Vereda Funda: geraizeiros lutam pela reconquista de suas terras e modos tradicionais de vida

Seu Nerim Rodrigues Barbosa, 68 anos, é um dos anciãos da comunidade de Vereda Funda, localizada no município de Rio Pardo de Minas, norte de Minas Gerais. Seu sonho é o de que um dia os parentes que foram embora venham morar de novo em sua comunidade, e que as chapadas voltem a dar as frutas e ter água com fartura como era antigamente. Vereda Funda recebeu esse nome em função das características geográficas do lugar: em uma das vias de acesso existem veredas em um vale profundo, na cabeceira de um dos afluentes do Rio Pardo. As famílias da comunidade vivem ao longo dessa vereda. O povo de Vereda Funda se identifica como geraizeiro. Seu Nerim confirma essa identidade. “Sou geraizeiro porque a região aqui chama de Gerais e eu nasci e vivi aqui e por isso sou geraizeiro. Nos dias de antes a pessoa vivia aqui, do que tinha na região, plantando pouco e colhendo pouco, buscando alguma coisa pra completar no mercado, mais vivia com o que saia da roça. Não dou nem conta de falar o que tinha aqui. Tinha mandioca, cada um tinha uma chacrinha de café, plantava feijão, arroz, milho, engordava uns porquinhos com o que saía da roça, não comprava ração, não. E tinha um gadinho que criava na solta. Um recurso bom que tinha aqui era a coleta de fruta do mato. Minha família pegava muito o pequi e fazia o óleo pra vender. Plantava cana, eu fui criado fazendo rapadura. A gente tinha um dizer assim que o lugar nosso é pobre, mas é rico de água. O que a gente não tinha levava uma coisa pra comprar outra, como o sal, as ferramenta e o tecido” . Os “dias de antes”, descritos por seu Nerim, se referem aos Gerais antes da chegada do eucalipto. Por volta de 1970 o Estado de Minas arrendou terras públicas a preços muito baixos para empresas de eucalipto. A região do Alto Rio Pardo reunia as melhores condições para que elas se instalassem: áreas planas de chapadas e solo que responde rápido para o crescimento do eucalipto. A comunidade se viu encurralada nas grotas, expropriadas de seus territórios. O lugar onde criavam o gado na solta, faziam coleta de lenha e frutos, principalmente o pequi, que era importante fonte de renda, deu lugar a extensas monoculturas de eucalipto e pinus, destinadas à produção de carvão. O eucalipto diminuiu o espaço de produção dos geraizeiros. Muita gente se viu obrigada a ir para São Paulo e para o Sul de Minas trabalhar no corte de cana e colheita do café, a fim de ganhar dinheiro para sobreviver, já que o eucalipto não permitia mais o desenvolvimento das atividades de produção e coleta de frutos como era feito antigamente. E não gerava os empregos prometidos. Na Vereda Funda, sempre foi muito forte a vida de comunidade. Foi nas reflexões das comunidades eclesiais de base que os geraizeiros encontraram a força para pensar seu processo de reapropriação dos territórios. A cultura era muito forte com tradição de celebrar o natal e a festa de reis. As reflexões feitas durante os encontros e reuniões fortaleciam o sentimento de que era importante buscar alternativas para mudar aquela realidade. Uma das estratégias encontradas foi ampliar as parcerias. Com a ajuda da Comissão Pastoral da Terra, Elmy Pereira Soares, um jovem da Vereda Funda, hoje presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais do município, começou a participar do Curso de Formação para Jovens promovido pelo Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM). A discussão sobre a agroecologia e a valorização do modo nativo de produção dos agricultores familiares possibilitou a troca de conhecimento e experiências entre o curso e a realidade da comunidade. Nas atividades intermodulares, o CAA/NM acompanhava nas comunidades a ação dos jovens. Foi assim que percebeu a grave situação em que viviam os geraizeiros: sem água, sem espaço para produzir e tendo sua agrobiodiversidade ameaçada em função do “deserto verde”, que devastou todos os recursos naturais da comunidade. Nos momentos de encontro, a comunidade sempre questionava por que as águas tinham acabado, os animais tinham sumido, a terra tinha diminuído e não conseguiam mais viver somente da agricultura. Pairava tristeza, revolta e uma grande vontade de ver os “tempos de antes” voltarem. Ao final de 1998, após essas reflexões, a comunidade começou a entender que a falta d’água, a terra seca, o pouco espaço de produção não eram causados pela falta de chuva. Compreenderam os motivos de perda do território e as consequências da degradação ambiental provocada pelas extensas áreas de monocultura. Foi assim que a luta começou. Em 2003, começaram a vencer os contratos da “firma” de eucalipto. Os movimentos sociais se uniram, assessoraram a comunidade e elaboraram uma proposta de reocupação produtiva e ambiental das chapadas, no seu entorno, que estavam nas mãos das empresas Florestaminas e Gerdau. Mas o governo de Minas Gerais, pressionado pelo setor florestal e guseiro, tomou a decisão de ir renovando os contratos com as “reflorestadoras”. A Via Campesina iniciou então sua articulação junto às comunidades tradicionais e apoiou a ocupação da Comunidade de Vereda Funda (ocorrida em 2004), que conseguiu finalmente negociar com a Florestaminas, intermediada pelo ITER, a devolução de 5.000 hectares para os geraizeiros. Foi a primeira experiência de reapropriação de terras públicas feita por comunidades tradicionais em Minas Gerais. Está em curso agora no Alto Rio Pardo um amplo movimento das comunidades geraizeiras pela reapropriação dos territórios e recuperação do Cerrado. Vereda Funda é uma delas. O desafio agora é implementar o “Projeto de Reconversão Extrativista: da monocultura do eucalipto para sistemas agrossilvipastoris”, que prevê a devolução de 170.000 ha de terras, que foram arrendados durante as décadas de 1970 e 1980, para cerca de 3.000 famílias de geraizeiros que vivem em dezenas de comunidades da região do Alto Rio Pardo. O projeto busca promover a implantação de um assentamento agroextrativista, visando a reocupação e utilização sustentável das terras públicas arrendadas no entorno da comunidade de Vereda Funda, beneficiando diretamente as 133 famílias de geraizeiros que ali vivem. Prevê também o estímulo à produção diversificada de alimentos, madeira e lenha, a segurança alimentar e a geração de empregos, através da transição para sistemas agroextrativistas, tendo como referência os potenciais ecossistêmicos e culturais do território e a melhoria da qualidade de vida. O sonho de seu Nerim é o sonho de toda a comunidade: recuperar os Gerais, voltar a ter água, construir uma escola diferenciada e ver todo o povo de volta à comunidade. A comunidade já colocou um pé na chapada: abrindo espaços para moradia dos filhos que não tinham terra, para as famílias plantarem lavouras diversificadas, formação de pastagens, recuperação dos cerrados e suas águas. Onde o Cerrado se regenerou, os frutos nativos já podem ser novamente coletados, a água voltou a correr. A comunidade tem esperança de que seja possível viver no lugar. E Vereda Funda segue na luta pela garantia da concretização do sonho de recuperar o modo geraizeiro de se viver.