Trajetória e desafios da construção de mercados locais para a agricultura ecológica em Porto União (SC) e União da Vitória (PR)

Nos municípios vizinhos de União da Vitória (PR) e Porto União (SC) a presença da agricultura familiar é significativa nos meios rurais, sendo as principais atividades econômicas os cultivos de milho e feijão, bem como o extrativismo de erva-mate. A região se destaca por ser rica em iniciativas de produção de base agroecológica, fruto do empenho de centenas de famílias agricultoras e suas organizações, que também contam com a assessoria de ONGs e de técnicos do serviço oficial de extensão rural, além de apoios eventuais de alguns governos municipais. Há, entretanto, um problema comum às organizações de agricultores familiares agroecológicos de boa parte do país: o acesso a mercados seguros que absorvam a diversidade produtiva característica da agricultura familiar da região. Assim como em outras regiões, a existência e a construção de canais de comercialização tem se revelado um dos principais desafios para o avanço e a consolidação dos processos de transição agroecológica, ou mesmo para a sustentabilidade financeira de unidades produtivas já consolidadas. Como parte das estratégias para viabilizar a comercialização de alimentos ecológicos produzidos por um número crescente de famílias agricultoras de Porto União e União da Vitória, foram constituídas feiras livres descentralizadas. As feiras livres coloniais, espaços tradicionais onde os agricultores vendem seus produtos diretamente aos consumidores, sempre alternaram períodos de altos e baixos em ambos os municípios. No final de 1995, havia em União da Vitória uma pequena feira junto ao terminal urbano de ônibus. Era composta por apenas cinco feirantes, sendo comum a comercialização de mercadorias adquiridas no Ceasa de Curitiba. Em Porto União, também junto ao terminal rodoviário, seis famílias compunham na mesma época uma feira. Mas, ao contrário da feira do município vizinho, os alimentos ali comercializados eram produzidos pelas próprias famílias feirantes. Uma delas – os Niedzielski – comercializava unicamente alimentos ecológicos produzidos em sua propriedade. A experiência e a ação dessa família foram determinantes no processo de construção das feiras agroecológicas em ambos os municípios. A prática da família na produção ecológica e na comercialização em feiras se iniciou em 1983, após Aires Niedzielski ter concluído curso técnico na Fundação Mokiti Okada. Simultaneamente, Aires começou a desenvolver trabalhos de divulgação da Agroecologia na região e, para tanto, contou com o apoio da Igreja Católica e do Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores Rurais (Cepagri), ONG sediada no município de Caçador (SC). A partir dessas iniciativas e da frustração das experiências de plantio de pêssego pelo sistema técnico convencional vivenciada por agricultores da comunidade Km 13, em Porto União, várias famílias deram início a processos de conversão ecológica de suas propriedades, que culminou, em 1996, com a fundação da Associação dos Produtores Ecológicos de Porto União (AFRUTA) por 22 famílias. Em 1993, a ONG AS-PTA – Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa deu início a suas atividades na região, aportando desde então grande contribuição para o desenvolvimento da Agroecologia por meio de processos continuados de formação e de experimentação técnica e sócio-organizativa. Já entre 1997 e 2000, em função da situação política municipal, profissionais oriundos da AS-PTA e da AFRUTA passaram a assumir a Secretaria Municipal de Agricultura e criaram o Programa Municipal de Agricultura Ecológica (PMAE), que tinha como objetivo atuar tanto no campo da organização e da formação quanto no apoio a compras comunitárias e à comercialização. Apoiando a comercialização para São Paulo e Curitiba, essas novas condições possibilitaram significativo avanço nos processos de transição agroecológica de muitas propriedades do município. Assim, foram organizados campos de sementes crioulas e as primeiras feiras de sementes, proporcionando o aumento local da escala de um trabalho que já vinha sendo realizado na região. A partir de 1997, o PMAE e a AFRUTA intensificaram o trabalho de divulgação da Agroecologia, por meio da realização de palestras em escolas, de matérias nas rádios e jornais locais e da promoção de eventos e, no início de 1998, o PMAE estruturou a Feira Colonial em uma das praças locais. Embora as feiras tenham se iniciado relativamente bem, conseguindo escoar a produção dos agricultores ecologistas pioneiros, a ampliação dos mercados mostrava-se como condição para permitir o aumento dos volumes comercializados. Para enfrentar esse desafio, o PMAE e a AFRUTA firmaram no segundo semestre de 1998 uma parceria com a Associação de Agricultura Orgânica do Paraná (Aopa), organização que coordenava a comercialização de alimentos orgânicos em Curitiba. Esse novo sistema de comercialização permitiu inclusão de 61 famílias de agricultores ecológicos em ambos os municípios. Felizmente, o sucesso inicial alcançado com a abertura da frente de comercialização em Curitiba não significou o abandono da estratégia original voltada para os mercados locais. Muito pelo contrário. Estimulados pelo aumento dos volumes de venda, os agricultores intensificaram sua presença nas feiras locais. Com isso, elas se multiplicaram, criando um grande número de pontos descentralizados nas cidades, a maior parte constituída por associados da AFRUTA. A partir de 2001, o PMAE foi praticamente desestruturado com a perda das eleições por parte do grupo político que vinha administrando a prefeitura e, após algumas tentativas de parceria com o poder municipal, a AFRUTA deu seguimento ao seu processo de organização para assegurar e ampliar os mercados locais, centrando sua estratégia comercial nas feiras e investindo em processos de agroindustrialização. Em 2004, após a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), agricultores vinculados à AFRUTA fundaram a Cooperativa dos Agricultores Ecológicos do Vale do Iguaçu (Coavi), com o objetivo de apoiar as feiras e de organizar a comercialização via PAA. De acordo com dados da AFRUTA e da prefeitura de União da Vitória, existem hoje 43 pontos de feira mantidos por 98 famílias agricultoras, 39 das quais (40% do total) dedicadas exclusivamente à produção agroecológica Nesse quadro geral, destaca-se o grande número de feiras descentralizadas mantidas por uma ou duas famílias agricultoras. Esse formato tem se mostrado interessante, pois não depende de grandes estruturas ou demoradas negociações com o poder público. Além disso, proporciona uma relação de proximidade com os consumidores, que passam a estabelecer laços mais fortes com as famílias produtoras de seus alimentos. Uma das dificuldades desse sistema tem sido manter a variedade de produtos procurada pelos consumidores. Alguns feirantes têm minimizado essa questão ao comercializar produtos de outras famílias agricultoras de suas comunidades. A AFRUTA conta atualmente com 23 pontos de feira distribuídos nos centros e nos bairros dos dois municípios, todos identificados com banners da Rede Ecovida de Agroecologia. A comercialização do conjunto desses pontos chega a 100 toneladas mensais, variando entre 0,8 e 4 toneladas mensais por ponto. A diversidade de produtos envolvidos também é grande. Qualquer um dos pontos de venda apresenta cerca de 40 a 60 itens diferentes, entre eles, 10 tipos de folhosas e outros 15 tipos de olerícolas, além de grãos, frutas, pães, geléias, sucos, conservas e derivados do leite. Além disso a renda obtida nesses espaços tem deixado satisfeita a maioria dos feirantes. Muitos foram os aprendizados nessa trajetória. De um sistema que começou com grande dependência do poder público municipal, originou-se um processo autônomo que hoje se autorregula a partir da intervenção direta das famílias agricultoras e suas organizações. Trata-se de um sistema de gestão simplificado e dinâmico, garantindo tomadas de decisão com ampla participação de todos – homens, mulheres, jovens e adultos – e atuando por meio de redes locais, sem depender de grandes estruturas, apenas do exercício de aprendizados coletivos. Por sua vez, o PMAE demonstrou que é possível estruturar políticas públicas de inclusão social fundamentadas na troca de experiências, na valorização do conhecimento dos agricultores, na simplificação de práticas de gestão econômica, viabilizando a geração de renda ou novas expectativas para as famílias por meio da utilização de recursos públicos com economia e de forma transparente.