Sementes que frutificam

Conduzidas pelo Pólo Sindical e das Organizações da Agricultura Familiar da Borborema e assessoradas pela AS-PTA, organizações da agricultura familiar da Paraíba vêm realizando desde 1993 um intenso trabalho de revalorização das variedades locais tradicionalmente plantadas nos roçados, conhecidas localmente como “Sementes da Paixão”. Para as milhares de famílias atualmente envolvidas, resguardar essas sementes significa assegurar a autonomia técnica e o modo de vida da agricultura familiar desenvolvido por gerações para a convivência com o semiárido. Todo este trabalho de resgate e ressignificação das sementes se deu através de uma metodologia peculiar, através da valorização dos ensinamentos assimilados a partir do saber e das práticas tradicionais dos próprios agricultores e agricultoras para que, juntamente com os conhecimentos científicos adquiridos em processos de formação, fossem desenvolvidas estratégias próprias para a garantia de ampla diversidade de sementes de boa qualidade e em quantidades suficientes para os plantios. Exemplo destes agricultores-experimentadores, Maria de Edísio é uma apaixonada pelas sementes desde recém casada. Olhos atentos, escolhia e guardava as sementes que “davam certo”, aquelas que melhor se adaptavam ao clima seco, o feijão mais saboroso, o milho que lhe rendia mais palha. Selecionadas as sementes, o plantio era todo consorciado: o algodão mocó junto com o milho, a fava e o feijão estendedor que subia pelo algodão. Após a colheita, as sementes eram secas ao sol e misturadas à cinza da fogueira de São João (para não dar gorgulhos) e armazenadas em recipientes fechados. Deste 1972, Maria passou a guardar as sementes que vem pesquisando de forma mais sistemática. Com uma lista de critérios bastante apurada, separa as variedades mais produtivas, as mais aceitas – que alcançam melhores preços no mercado – e as mais saborosas. Sobre a importância de conservar as sementes, afirma: “Se eu perder, meus vizinhos podem ainda ter. Não quero as sementes só para mim; quero para mim, para meus filhos e vizinhos”. Desta forma, Maria assegura melhores condições de “guarda” de suas sementes e de todo o conhecimento a elas associado. José Luna, mais conhecido como Zé Pequeno, é outro agricultor guardião de sementes. Desde cedo aprendeu a importância das sementes e a seca de 1974 fez com que seu trabalho envolvesse mais pessoas. Nesta ocasião os moradores de São Tomé, em Alagoa Nova-PB, ficaram sem sementes para plantar. Zé Pequeno foi procurar a ajuda da Igreja e recebeu um saco de feijão, um de milho e o desafio de fazer multiplicar estas sementes. Juntaram-se então representantes de dez famílias e formou-se o primeiro Banco de Sementes: cada uma levou para casa 10 quilos de feijão e 2 de milho. Essas sementes deveriam ser multiplicadas e cada família deveria então devolver 15 quilos de feijão e 3 de milho. Funcionou. Após alguns anos, 150 famílias estavam associadas ao Banco de Sementes. Os bancos comunitários se multiplicaram, formando uma rede estadual com mais de 200 unidades, em 60 municípios. Por intermédio dela, milhares famílias de agricultores tiveram acesso a sementes de oito espécies de cultivo e mais de 80 diferentes variedades. Coordenada pela Articulação do Semiárido Paraibano – ASA-PB, a Rede Estadual de Bancos de Sementes foi determinante para a emergência de um ambiente político-organizativo que culminou na formulação e na negociação de propostas alternativas às políticas de sementes do Governo do Estado da Paraíba. Desde 1998, a ASA-PB vem estabelecendo convênios com a Secretaria Estadual de Agricultura para o fortalecimento dos Bancos com sementes de variedades locais. A partir de 2004, em parceria com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), as sementes de variedades locais começaram a ser compradas dos próprios agricultores e plantadas pelos sócios dos Bancos. O estoque familiar de sementes é outra estratégia fundamental para a convivência com as irregularidades climáticas do semiárido, uma vez que garante a quantidade e a diversidade de espécies e variedades selecionadas para o momento exato de plantio. Em momentos de crise aguda provocados por longos períodos de seca, os estoques também podem atender às necessidades alimentares da família. Associada aos roçados, que frequentemente possuem mais de sete espécies em consórcio, a variabilidade genética de espécies cultivadas na região também é significativa. Em um diagnóstico realizado em 1997, foram encontradas em apenas seis comunidades 67 variedades de três espécies –feijão-de-arranque (Phaseolus vulgaris), feijão-macassa (Vigna unguiculata) e fava (Phaseolus lunatus). A manutenção dessa ampla diversidade nos roçados do semiárido, juntamente com as estratégias de conservação das sementes, é sem dúvida uma estratégia antirrisco que proporciona flexibilidade de manejo, um fator determinante para a estabilidade econômica e ecológica dos sistemas agrícolas e para a segurança alimentar.