Sementes da vida

A Revolução Verde vem, historicamente, impactando a cultura camponesa, que tradicionalmente trabalha respeitando o meio ambiente e as formas de vida de cada comunidade. Um exemplo destes impactos foi a introdução das sementes híbridas, na década de 1980, pelos serviços de extensão e de crédito oficiais, forçando as famílias camponesas a aderirem aos pacotes tecnológicos que geram dependência econômica e cultural ao agronegócio. Muitos camponeses perderam a tradição de produzir a própria semente e viram-se obrigados a adquirir anualmente sementes híbridas nos mercados. Juntamente com as sementes, as famílias são levadas a comprar outros insumos industriais necessários para que as variedades comerciais produzam satisfatoriamente. No estado de Goiás, por exemplo, o milho faz parte da cultura alimentar da população, sendo empregado na produção de farinha, fubá, pamonha, mingau de milho verde e bolinho. As plantas de milho são integralmente aproveitadas como forragem para a criação de gado de leite. Trata-se, portanto, de um cultivo central nas estratégias de reprodução técnica, econômica e cultural dos camponeses no estado. Com o objetivo de mudar essa conjuntura vivida pelas famílias camponesas diante do desafio de enfrentamento ao agronegócio, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) deu início ao trabalho de resgate, produção, multiplicação e distribuição de variedades crioulas, tendo como estratégia a organização dos grupos de base nas comunidades rurais. Em 2004, companheiros do MPA e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Goiás participaram da 3ª Festa Nacional das Sementes Crioulas em Anchieta, Santa Catarina. Nessa ocasião, tiveram a oportunidade de conhecer e trazer algumas variedades de milho para serem experimentadas em seu estado. Na safra 2004/2005, essas sementes foram cultivadas na cidade de Goiás, rendendo cerca de 14 mil kg de sementes que foram distribuídos para 100 famílias de outros 22 municípios do estado. O plantio dessas sementes na safra seguinte gerou uma colheita de aproximadamente 139 mil kg de milho crioulo. Nessa safra, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) apoiou o trabalho por meio de um projeto voltado para a capacitação e o acompanhamento técnico das famílias camponesas nos temas de resgate, produção, multiplicação e distribuição de sementes crioulas. Esse projeto foi determinante para que o trabalho fosse disseminado pelo estado, com sustentabilidade e em condições adequadas, garantindo o acesso de 300 famílias às sementes crioulas. Na safra 2006/2007, foram colhidos 140 mil kg de sementes de milho crioulo. As principais variedades de milho que vêm sendo cultivadas são o caiano, o pixurum 05, o língua de papagaio, o MPA 01 (variedade criada pelas famílias camponesas em Santa Catarina), o milho roxo e o milho branco. Em paralelo a esse trabalho com milho, iniciou-se recentemente o resgate de variedades de arroz crioulo, atividade que envolve cerca de 100 famílias. As variedades de arroz cultivadas são o arroz preto e o arroz agulhão. Atualmente, mais de 150 comunidades rurais no estado têm autonomia na produção de sementes. A rápida irradiação do trabalho no estado contou também com a parceria realizada entre o MPA e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Por intermédio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), gerido pela Conab, toda a produção de sementes de milho crioulo das famílias foi comprada e doada para outras famílias que ainda não tinham acesso a essas sementes. Para os agricultores que produziram as sementes, esse mecanismo de compra pela Conab foi de grande importância, tanto pelo fato de ter proporcionado a melhoria de sua renda, quanto pelo reconhecimento oficial de suas sementes. Essa nova conjuntura vem sendo fundamental para estimular a continuidade do trabalho nas comunidades envolvidas. Esses materiais serão avaliados na próxima safra em ensaios de competição. Outra estratégia importante para a consolidação desse trabalho é a organização de bancos comunitários de sementes. São neles que as famílias camponesas armazenam, trocam e adquirem sementes para o seu uso. O primeiro banco foi implantado no município de Goiás e atualmente já são 40 bancos comunitários distribuídos nos municípios por onde o trabalho vem se disseminando, cada qual associando, em média, 25 famílias. O objetivo é que cada comunidade camponesa no estado possua e faça a gestão de seu próprio banco de sementes. Além de expandirmos as ações de resgate das sementes como estratégia de promoção da soberania alimentar e de preservação da agrobiodiversidade, temos a perspectiva de dar início a ações de melhoramento participativo dessas variedades. A I Festa das Sementes Crioulas de Goiás, realizada em agosto de 2007, na Cidade de Goiás, com a presença de 600 camponeses, foi um momento organizado para reforçar esse trabalho – tanto ao articular os grupos envolvidos e debater os resultados que vêm sendo alcançado, como ao estimular outras comunidades a se integrarem. Alguns resultados alcançados Com base em suas vivências nesse trabalho, os camponeses afirmam categoricamente a superioridade das variedades crioulas em relação às híbridas. Em primeiro lugar, porque rendem mais na hora de fazer o fubá e a pamonha, além de serem mais saborosas. Outro indicador da superioridade das variedades crioulas sobre as comerciais é a produtividade, seja em termos de grãos, seja no que se refere ao volume da palhada para a alimentação do gado de leite. Segundo avaliação do senhor Custódio José do Nascimento, do município de Catalão (GO), o cultivo de sua área com variedades crioulas rende 30% a mais de silagem e 35% a mais de grãos do que quando cultivava a mesma área com sementes híbridas. Esse tipo de avaliação é recorrente entre os camponeses envolvidos no processo. Outras iniciativas vêm sendo desenvolvidas com o objetivo de recuperar a rica cultura local de cultivo e uso do milho, entre elas, o artesanato (bonecas e flores) com a palhada de milho, atividade praticada sobretudo pelas mulheres. As vantagens das variedades crioulas também são notadas no cultivo do arroz. Além de serem mais rústicas e melhor adaptadas ao clima local, possuem melhores propriedades no uso culinário, de acordo com os agricultores. A recuperação das sementes crioulas vem trazendo a ideia de resgatar a cultura camponesa que valoriza a alimentação saudável, a roça, as pamonhadas e os monjolos. E é esse o sentido do lema que orienta as ações da Via Campesina: Sementes patrimônio dos povos a serviço da Humanidade.