Rede de Comercialização Solidária de Agricultores Familiares e Extrativistas do Cerrado

O imaginário de invisibilidade e isolamento que cerca o Cerrado e seus povos fez com que a natureza desse bioma fosse reduzida a mera mercadoria, primeiro pelos potenciais exploráveis, depois pela capacidade produtiva de suas terras agricultáveis, encurralando suas populações e agriculturas. Esse olhar mercantil sobre a região ignorou não apenas a sua importância ambiental, mas principalmente a riqueza advinda das diversas culturas construídas em relação profunda com o ambiente, que dão a inúmeras comunidades de pescadores, vazanteiros, geraizeiros, extrativistas e outros o sentimento de pertencimento ao Cerrado. Essas comunidades agroextrativistas têm enfrentado, nas últimas décadas, uma perda crescente de espaço, sobretudo devido à ação do agronegócio exportador, que impõe uma nova lógica de ocupação do território e utilização dos recursos naturais. No entanto, além de concentrar riqueza e poder, esse modelo ocasiona a contaminação dos solos, da água e dos alimentos, inviabilizando práticas socioculturais dos que lá vivem e destituindo-os de suas identidades. Em 2000, um processo de discussão e diálogo foi iniciado em conjunto com seis comunidades rurais sobre a realidade partilhada por agricultores familiares de Caldazinha, pescadores de Aruanã, extrativistas de São Domingos e agricultores assentados de Jandaia, Araguapaz e Silvânia, todos municípios de Goiás e assessorados pelo Centro de Desenvolvimento Agroecológico do Cerrado (Cedac). A reflexão desencadeada permitiu perceber que as dificuldades enfrentadas pelas famílias e suas comunidades as aproximavam, apesar do distanciamento geográfico e independente dos modos de vida e de produção adotados por elas. Os principais problemas identificados foram: o acesso restrito aos meios de reprodução social, como terra, água e biodiversidade; a sazonalidade e a baixa capacidade de produção e extração individual para o atendimento da demanda, o que dificulta a garantia e a continuidade de oferta dos produtos ao mercado; a diminuição da diversificação da produção, o que consequentemente tem levado a uma dieta alimentar mais restrita; a escassez da mão-de-obra familiar, agravada pela migração dos jovens para os centros urbanos; a não agregação de valor aos produtos comercializados, seja no beneficiamento ou na comercialização direta; a falta de organização de toda a atividade de produção e extração; a dispersão da produção, aumentando os custos de transporte, ainda mais no caso de produtos extrativistas; a dependência dos fatores climáticos; as restrições no acesso ao crédito; os padrões de qualidade da produção condicionados pelo mercado convencional; a utilização de matérias-primas originadas de espécies vegetais nativas sem que qualquer responsabilidade sobre a forma de obtenção das mesmas seja assumida por grande parte das empresas; e, por último, a dificuldade de participar dos espaços de discussão e formulação das políticas públicas. Foi diante dessas condições que nasceu a ideia de fortalecer uma nova “trama” social com os sujeitos de fato do Cerrado, saindo do isolamento e da marginalidade, através da organização coletiva e valorização das riquezas locais, de modo que a cultura e seus produtos possam ser acessados e valorizados pela sociedade brasileira. Assim foi constituída a Rede de Comercialização Solidária de Agricultores Familiares e Extrativistas do Cerrado, que atualmente reúne 1.238 famílias, localizadas em 37 municípios dos estados de Goiás, Minas Gerais e Bahia. As experiências que alimentaram a organização sócio-produtiva dos agroextrativistas da Rede estão baseadas na busca por uma maior autonomia e participação dos mesmos em relação aos seguintes aspectos: assistência técnica, desenvolvida por meio da formação de agroextrativistas monitores que acompanham o planejamento da unidade familiar para processo de produção e manejo; agroindustrialização dos produtos e subprodutos (resíduos), agregando valor e garantindo maior inserção no mercado; tradução do significado do saber-fazer das populações do Cerrado, através de um marketing próprio dos produtos e serviços oferecidos pela Rede, com a marca Empório do Cerrado; monitoramento participativo, como ferramenta própria de controle social dos processos desenvolvidos; e desenvolvimento de estratégias de comercialização dos produtos, conciliando preço justo e acesso a novos mercados, como escolas, redes de supermercados, lojas de produtos naturais e feiras. Para garantir a comercialização coletiva dos agroextrativistas da Rede foi constituída a Cooperativa Mista de Agricultores Familiares, Extrativistas, Pescadores, Vazanteiros e Guias Turísticos do Cerrado (Coopcerrado), que comercializa o resultado de todo processo de organização, entre eles os frutos secos de favela (Dimorphandra sp), vendidos direto para a indústria farmacêutica desde 2001; frutos in natura de pequi (Caryocar sp) para atacadistas; sementes de pequi mini-processadas em bandejas para supermercados; e óleo de pequi para a indústria de cosméticos. Dos frutos do baru (Dipteryx alata) é produzida a castanha de baru, a farinha de baru (utilizada na merenda escolar de Goiânia desde 2001), biscoitos e granolas, sendo que na composição destes últimos também se utiliza a farinha de jatobá (Hymenaea stignocarpa), mel, gergelim, ovos, banana desidratada e açúcar mascavo, produzidos pelos agroextrativistas e processado em uma unidade de beneficiamento de produtos agroecológicos em Caldazinha (GO). Já do resíduo (casca dos frutos de baru) obtém-se o carvão ecológico. Outras experiências de organização estão sendo estruturadas para a diversificação da renda das famílias e o melhor aproveitamento das potencialidades locais, como a construção de uma agroindústria de produtos apícolas e uma agroindústria de óleos vegetais, cujas infraestruturas contam com recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf-infraestrutura). A Rede se tornou um movimento em expansão contínua, onde os agroextrativistas do Cerrado vêm conquistando espaço e buscando pautar demandas próprias, necessárias ao fortalecimento do seu protagonismo. Algumas propostas vêm se transformando em política pública pela reivindicação direta da Rede. Entre elas citam-se a aprovação da Lei nº 15.015, de 29 de dezembro de 2004, que trata da matéria tributária dispondo sobre a redução de base de cálculo do Imposto de Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS) sobre a industrialização de produtos típicos do Cerrado (antes era 17% e com a lei passou para 7%), e a criação da Portaria nº18/2002, da Agência Ambiental, que proíbe o corte do baru no estado de Goiás. Da organização do processo de produção e comercialização em rede nasceu a luta pela terra, água e biodiversidade. A proposta inclui a criação de cinco reservas extrativistas, nos municípios de Aruanã, São Domingos e Mambaí, em Goiás; Lassance, em Minas Gerais, e Cocos, na Bahia, como também a implantação do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), no município de Jandaia, onde estão acampadas 195 famílias. Além disso, está em andamento a criação de uma cooperativa de crédito, a “Rede Cred”.