Proibição da pulverização aérea de agrotóxicos nos limites do município de Glória de Dourados


Um grupo de agricultoras/es familiares do município de Glória de Dourados se organizou há mais de 20 anos na APOMS, que hoje atua em vários outros municípios, tendo uma abrangência estadual. A partir da experiência da APOMS, foi constituída também a COOPERAPOMS, que tem como objetivo organizar a comercialização da produção. Essa articulação dos agricultores permite uma atuação em perspectiva de rede, fortalecendo a articulação com diversos coletivos estaduais e nacionais, como a própria ANA. No período em que estava acontecendo o debate sobre os impactos dos agrotóxicos e sobre a necessidade da lei da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, por meio das ações de lançamento do dossiê "Um Alerta contra os Agrotóxicos", também estavam se articulando grupos de estudos no estado do MS, a partir das organizações e movimentos sociais populares e com envolvimento de pesquisadores vinculados às universidades e à Embrapa.
Assim, com apoio desses movimentos e organizações, os sericicultores acionaram os Ministérios Públicos Estadual e Federal, que encaminharam a realização de uma análise técnica das perdas das famílias sericicultoras e das causas dessas perdas. No período (2015), estava acontecendo a caravana de agroecologia promovida pela ANA, em preparação ao IV Encontro Nacional de Agroecologia (IV ENA), e acabou acontecendo de a audiência pública ocorrer justamente no dia em que a Caravana passava pelo munícipio de Glória de Dourados, o que garantiu uma expressiva participação de representantes de organizações sociais populares do Bioma Cerrado (Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e do próprio Mato Grosso do Sul).
Esse processo também ajudou a qualificar o debate em torno dos impactos dos agrotóxicos para além das perdas econômicas imediatas dos agricultores, abrangendo a contaminação do ar, das águas, dos solos e os impactos na saúde — como a possibilidade de aumento de câncer, de má formação e diversos outros agravos à saúde vinculados ao uso de agrotóxicos.
A ação em rede permitiu também articular pesquisadores e movimentos distantes do território para participar, como o Núcleo de Estudo em Saúde do Trabalhador, da UFMT, e o Grupo Tramas, da UFC. O processo de envolvimento de diversos setores foi importante para garantir um amplo debate sobre o problema e ampliar a mobilização em torno da necessidade da construção de ações no âmbito político. No entanto, a participação de organizações dos trabalhadores, como a APOMS, foi essencial para dar os rumos necessários aos encaminhamentos e conseguir articular a formulação da legislação de proibição da pulverização.
O argumento da usina, que sustentava a eficiência e segurança da técnica de pulverização, foi rebatido pela apropriação das pesquisas desenvolvidas em diversos estados que contestam essa segurança e demonstram os impactos sobre a saúde — como o documento do Instituto Nacional do Câncer (INCA) lançado em 2015, que relaciona os agrotóxicos ao aumento do câncer nas regiões do agronegócio.

2. Antecedentes da experiência

2.1 Faça um resumo dos antecedentes da iniciativa.

O município de Glória de Dourados, no estado de Mato Grosso do Sul, e a região do entorno, é formado predominantemente por agricultoras/es familiares, e já foi um importante polo produtor do bicho de seda do Brasil, sendo que esta ainda é uma importante atividade econômica local, envolvendo diversas unidades familiares no processo produtivo que vai do cultivo da amoreira ao cuidado com as lagartas. O município de Glória de Dourados tem uma população de quase 10 mil habitantes, conforme estimativa do IBGE de 2020, e tem sua economia baseada na agricultura familiar, com produção de leite, mandioca, avicultura de corte, suinocultura industrial, hortifruticultura e sericicultura. Há aproximadamente 20 anos, um grupo com 14 agricultoras/es iniciou o processo de transição orgânica com a formação da Associação de Produtores Orgânicos de Mato Grosso do Sul (APOMS).

Em 2012-2013, a monocultura de cana-de-açúcar passa a se destacar no município e no entorno e a ilhar as comunidades. Junto com a cana-de-açúcar, chegou também a pulverização aérea de agrotóxicos, sendo que a partir do ano de 2015 as comunidades rurais começaram a perceber os problemas no seu processo produtivo. Entre os problemas relatados estão: perda da produção de alimentos, perda de animais (bicho da seda, abelha e mamangava), perda da biodiversidade, intoxicações. Percebeu-se que essas perdas poderiam estar relacionadas às “derivas” da pulverização, e afetavam mais intensamente as unidades familiares mais próximas dos canaviais, mas também as mais distantes, ainda que com menos intensidade.

No caso do bicho da seda, as perdas estavam variando de 50% a 100%, o que inclusive levou algumas/ns sericicultoras/es a abandonar o processo produtivo. Entre a apicultura e a horticultura, as perdas foram variáveis, levando a mudanças no processo produtivo, como o abandono de algumas culturas — a exemplo do maracujá, que é altamente dependente da mamangava para polinização. A partir da constatação pelas/os produtoras/es de que as perdas estavam vinculadas à contaminação por agrotóxicos, com a visita de técnicas/os encaminhadas/os pela indústria de seda para análise das folhas de amora consumidas pelo bicho, mas também com a participação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) na coleta de amostras e encaminhamentos das análises, as/os agricultoras/es buscaram inicialmente dialogar com a usina para negociar, buscando principalmente a indenização dos prejuízos. No entanto, não tiveram êxito nesse processo, já que a usina reafirmava utilizar todas as normas e padrões de segurança na aplicação dos produtos. Com essa impossibilidade de negociação direta com a usina, foram encaminhadas as denúncias aos órgãos responsáveis, como: secretarias municipal e estadual de agricultura, delegacia do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Ministério Público Federal e Estadual.

Esse caso, junto com outras ocorrências de contaminação que ocorreram em Mato Grosso do Sul, criou uma movimentação no estado, sendo que em 18 de agosto de 2015 o deputado federal Zeca do PT e os deputados estaduais Amarildo Cruz e Pedro Kemp, todos do Partido dos Trabalhadores (PT), realizaram na Assembleia Legislativa do Estado o Seminário “Impacto dos Agrotóxicos na Sociedade”, que teve como foco debater com o conjunto da sociedade sobre as problemáticas do uso intensivo e extensivo de agrotóxicos na monocultura e sobre como esse consumo impacta na saúde, na economia da produção familiar e no meio ambiente, bem como pensar ações no âmbito da legislação para reduzir os impactos.

No município de Glória de Dourados, a questão também ganhou uma dimensão mais ampliada devido ao impacto da mortalidade dos bichos da seda e então o Ministério Público Estadual, via Promotoria de Justiça, e o Ministério Público Federal, via Procuradoria de Justiça, convocaram uma audiência pública que aconteceu no auditório da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus Glória de Dourados, que foi presidida pelo promotor Victor Leonardo de Miranda Taveira e pelo procurador Marco Antônio Delfino de Almeida e envolveu todas as forças políticas do munícipio e entorno. Percebendo a importância desse momento, as organizações e movimentos populares do município e região passaram a articular o máximo de pessoas para participar do evento — tanto pessoas das comunidades afetadas pela pulverização quanto técnicas/os, pesquisadoras/es das universidades federal e estadual e de outras universidades, mas que tinham pesquisas reconhecidas no tema, pesquisadoras/es da Embrapa, e representantes das empresas de seda — e também conseguiram articular para que a data dessa audiência coincidisse com a realização da Caravana de Agroecologia, uma agenda articulada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) com participação de redes de agroecologia e movimentos agroecológicos que tinha presença de pessoas (agricultoras/es, representantes de movimentos sociais populares e de redes de agroecologia) dos estados de Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais e de outras regiões de Mato Grosso do Sul.

Isso fortaleceu os sericicultores nas suas denúncias e desmontou os argumentos das/os representantes da usina acerca da segurança das aplicações e da garantia de atingir apenas o alvo durante o processo de voo da aeronave. Depois dessa audiência pública, foi construído junto com a Assembleia Legislativa, a partir da proposição do deputado estadual Amarildo Cruz, do PT, uma audiência em Campo Grande, no dia 08 de novembro de 2016, com o tema “Aperfeiçoamento de Legislação sobre Pulverização Aérea”, a fim de refletir sobre a legislação de uso de agrotóxicos do estado e seus impactos sobre a agricultura familiar, sobre a saúde e o meio ambiente. Essa audiência foi construída em parceria com o Ministério Público Federal e Estadual, o Ministério Público do Trabalho e a Comissão de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos do MS. Nessa audiência foi levantada a necessidade de leis mais restritivas para pulverização aérea, incluindo aumentar a distância mínima em relação a comunidades, moradias, nascentes etc., e também a necessidade de melhorar o processo de fiscalização.

Apesar da importância desse momento, e da mobilização que foi construída, o estado não avançou no processo de alteração da legislação já existente por uma mais restritiva, por causa da força política do setor ruralista. Mas, a partir dessa segunda audiência, a prefeitura de Glória de Dourados iniciou o diálogo com as organizações do município, principalmente via APOMS, sobre quais as ações possíveis para resolução do problema, e a partir daí veio a construção de um projeto de lei para proibir a pulverização aérea de agrotóxicos no município, que foi sancionada no dia 23 de novembro de 2016.

Em paralelo à criação da lei (mesmo com a criação da lei, os prejuízos causados pela deriva continuaram, com a pulverização ainda acontecendo no município vizinho), o prejuízo dos agricultores seguiam acontecendo e eles seguiam em busca dos seus direitos junto ao MPE e ao MPF, que intermediaram um acordo com a usina incluindo a criação de uma comissão para acompanhar os casos futuros, a doação dos 75% dos prejuízos mensurados para investir no laboratório da Embrapa e criar um sistema de monitoramento em tempo real das aeronaves. A formação dessa comissão foi uma conquista da articulação dos agricultores. Vale ressaltar a importância da experiência de construção dessa lei para o estado do MS, mas também para a região Centro-Oeste. Considerando a força do protagonismo político do agronegócio na região e também que esta é a única lei restritiva a essa técnica nos três estados que compõem a região, o processo de mobilização e as estratégias de articulação, ampliando o diálogo para outros setores e relacionando impactos diretos e indiretos, desenha um caminho possível no enfrentamento ao uso de agrotóxicos. Desta forma, é reconhecida a necessidade de divulgar os êxitos do processo e fortalecer a resistência no município, defendendo a permanência da lei.

3. Participação social e política na experiência

3.3 Como se deu a participação das diferentes organizações da sociedade civil (grupos, coletivos, movimentos sociais e outros) na iniciativa?

Os grupos atuaram em uma perspectiva complementar para fortalecer a mobilização, com a articulação com os sericicultores e com a indústria da seda, com os produtores orgânicos, com os apicultores e horticultores, com as universidade e centros de pesquisas, com o Ministério Público Estadual, Federal e do Trabalho, com os deputados estaduais e federal e com a construção junto com as redes nacionais como a ANA — via construção da caravana —, bem como, posteriormente, com a prefeitura e a câmara de vereadores para aprovação e sanção da lei.

3.5 Em que âmbito se deu a participação da sociedade civil?

  • Audiência pública
  • Na articulação com atores políticos (advocacy)
  • Consulta pública

3.6 Dentre as pessoas que protagonizaram essa iniciativa, marque o gênero com maior participação:Homens

3.7 Dentre as pessoas que protagonizaram essa iniciativa, assinale o grupo racial com maior participação:Não é possível aferir

3.8 Dentre as pessoas protagonistas, marque o grupo de faixa etária com maior participação:Não é possível aferir

3.10 Como pode ser qualificado o processo de participação da sociedade civil na iniciativa?Muito efetiva (participação substantiva durante todo o processo)

3.13 Quais os resultados, aprendizados e desafios da iniciativa?

Dos Aprendizados:


Frisa-se a necessidade de manter a mobilização, de forma a fortalecer as ações do Ministério Público (MP) na defesa dessas causas coletivas, pois, sem a mobilização popular, o MP pode até ajuizar as ações, mas não tem força para as batalhas políticas.

O bicho da seda é um bioindicador: se eles estão morrendo, outros organismos benéficos também estão morrendo e as pessoas estão sendo impactadas.


Dos Desafios:


Manter o tema dos agrotóxicos na pauta de debates no âmbito das organizações sociais e do Estado, e manter as comunidades mobilizadas. Como se trata de uma luta de grandes contra pequenos — mesmo sem conseguir mudar a lei, os grandes podem acabar ganhando, pois as produções continuam sendo contaminadas e continua havendo perdas —, isso pode levar os camponeses a desistir, o que pode alterar a dinâmica produtiva da região: vários locais que produziam bicho da seda agora já não produzem mais, devido ao avanço da monocultura.

Há ainda os prejuízos econômicos, pois, enquanto não se resolvem os processos judicializados, os próprios camponeses têm de arcar com os custos judiciais, o que compromete sua subsistência e sua reprodução social. Falta um caminho definido entre os prejudicados e a legislação, pois não há um caminho claro para fazer as denúncias.

Há a necessidade de melhorar a legislação em geral, a fim de aumentar os distanciamentos mínimos para a pulverização. Neste sentido, é importante ampliar o debate de zonas/territórios livres de agrotóxicos, inclusive de forma a impulsionar a produção de orgânicos.

A usina ameaça não contratar ou mesmo demitir trabalhadores oriundos de Glória de Dourados, como elemento de coerção para ganhar apoio social. Ao mesmo tempo, a usina atua em ações sociais, como o financiamento (junto com outras empresas do entorno) para aquisição de equipamento para a detecção de câncer. Assim, aparece como uma benfeitora social, mas sem debater as causas que levam ao aumento do câncer


Em qual(is) rede(s) a iniciativa foi construída ou articulada?

Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida

Rede APOMS


NomeCampanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela vida

Qual o papel da organização na iniciativa?

  • Mediadora entre sociedade civil e poder público
  • Facilitadora do processo participativo
  • Participante
  • Apoiadora
  • Comunicadora

NomeAssociação dos produtores Orgânicos de Mato Grosso do Sul

Qual o papel da organização na iniciativa?

  • Comunicadora
  • Apoiadora
  • Participante
  • Mediadora entre sociedade civil e poder público
  • Facilitadora do processo participativo

4. Institucionalidade do processo

4.1 Quais esferas públicas estiveram associadas?

  • Sistema de justiça
  • Legislativo
  • Executivo

4.2 A experiência se deu de forma suprapartidária? Não se aplica

4.3 A experiência se deu de forma intersecretarial/intersetorial? Sim

4.4 Houve envolvimento de conselhos municipais?Não

4.5 A experiência resultou em alguma institucionalização?Lei

Indique qual o nome e/ou número da norma ou instrumento de política pública.Lei Municipal nº 1087 de 23 de novembro de 2013

Qual o estado atual da norma ou instrumento de política pública?Não se aplica

Há orçamento para execução da política pública?Não se aplica

4.6 A experiência está relacionada a outras políticas públicas municipais?Não

4.7 A experiência está relacionada a alguma política pública estadual?Não

4.8 A experiência está relacionada a alguma política pública federal?Não