2.1 Faça um resumo dos antecedentes da iniciativa.
O município de Glória de Dourados, no estado de Mato Grosso do Sul, e a região do entorno, é formado predominantemente por agricultoras/es familiares, e já foi um importante polo produtor do bicho de seda do Brasil, sendo que esta ainda é uma importante atividade econômica local, envolvendo diversas unidades familiares no processo produtivo que vai do cultivo da amoreira ao cuidado com as lagartas. O município de Glória de Dourados tem uma população de quase 10 mil habitantes, conforme estimativa do IBGE de 2020, e tem sua economia baseada na agricultura familiar, com produção de leite, mandioca, avicultura de corte, suinocultura industrial, hortifruticultura e sericicultura. Há aproximadamente 20 anos, um grupo com 14 agricultoras/es iniciou o processo de transição orgânica com a formação da Associação de Produtores Orgânicos de Mato Grosso do Sul (APOMS).
Em 2012-2013, a monocultura de cana-de-açúcar passa a se destacar no município e no entorno e a ilhar as comunidades. Junto com a cana-de-açúcar, chegou também a pulverização aérea de agrotóxicos, sendo que a partir do ano de 2015 as comunidades rurais começaram a perceber os problemas no seu processo produtivo. Entre os problemas relatados estão: perda da produção de alimentos, perda de animais (bicho da seda, abelha e mamangava), perda da biodiversidade, intoxicações. Percebeu-se que essas perdas poderiam estar relacionadas às “derivas” da pulverização, e afetavam mais intensamente as unidades familiares mais próximas dos canaviais, mas também as mais distantes, ainda que com menos intensidade.
No caso do bicho da seda, as perdas estavam variando de 50% a 100%, o que inclusive levou algumas/ns sericicultoras/es a abandonar o processo produtivo. Entre a apicultura e a horticultura, as perdas foram variáveis, levando a mudanças no processo produtivo, como o abandono de algumas culturas — a exemplo do maracujá, que é altamente dependente da mamangava para polinização. A partir da constatação pelas/os produtoras/es de que as perdas estavam vinculadas à contaminação por agrotóxicos, com a visita de técnicas/os encaminhadas/os pela indústria de seda para análise das folhas de amora consumidas pelo bicho, mas também com a participação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) na coleta de amostras e encaminhamentos das análises, as/os agricultoras/es buscaram inicialmente dialogar com a usina para negociar, buscando principalmente a indenização dos prejuízos. No entanto, não tiveram êxito nesse processo, já que a usina reafirmava utilizar todas as normas e padrões de segurança na aplicação dos produtos. Com essa impossibilidade de negociação direta com a usina, foram encaminhadas as denúncias aos órgãos responsáveis, como: secretarias municipal e estadual de agricultura, delegacia do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Ministério Público Federal e Estadual.
Esse caso, junto com outras ocorrências de contaminação que ocorreram em Mato Grosso do Sul, criou uma movimentação no estado, sendo que em 18 de agosto de 2015 o deputado federal Zeca do PT e os deputados estaduais Amarildo Cruz e Pedro Kemp, todos do Partido dos Trabalhadores (PT), realizaram na Assembleia Legislativa do Estado o Seminário “Impacto dos Agrotóxicos na Sociedade”, que teve como foco debater com o conjunto da sociedade sobre as problemáticas do uso intensivo e extensivo de agrotóxicos na monocultura e sobre como esse consumo impacta na saúde, na economia da produção familiar e no meio ambiente, bem como pensar ações no âmbito da legislação para reduzir os impactos.
No município de Glória de Dourados, a questão também ganhou uma dimensão mais ampliada devido ao impacto da mortalidade dos bichos da seda e então o Ministério Público Estadual, via Promotoria de Justiça, e o Ministério Público Federal, via Procuradoria de Justiça, convocaram uma audiência pública que aconteceu no auditório da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus Glória de Dourados, que foi presidida pelo promotor Victor Leonardo de Miranda Taveira e pelo procurador Marco Antônio Delfino de Almeida e envolveu todas as forças políticas do munícipio e entorno. Percebendo a importância desse momento, as organizações e movimentos populares do município e região passaram a articular o máximo de pessoas para participar do evento — tanto pessoas das comunidades afetadas pela pulverização quanto técnicas/os, pesquisadoras/es das universidades federal e estadual e de outras universidades, mas que tinham pesquisas reconhecidas no tema, pesquisadoras/es da Embrapa, e representantes das empresas de seda — e também conseguiram articular para que a data dessa audiência coincidisse com a realização da Caravana de Agroecologia, uma agenda articulada pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) com participação de redes de agroecologia e movimentos agroecológicos que tinha presença de pessoas (agricultoras/es, representantes de movimentos sociais populares e de redes de agroecologia) dos estados de Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais e de outras regiões de Mato Grosso do Sul.
Isso fortaleceu os sericicultores nas suas denúncias e desmontou os argumentos das/os representantes da usina acerca da segurança das aplicações e da garantia de atingir apenas o alvo durante o processo de voo da aeronave. Depois dessa audiência pública, foi construído junto com a Assembleia Legislativa, a partir da proposição do deputado estadual Amarildo Cruz, do PT, uma audiência em Campo Grande, no dia 08 de novembro de 2016, com o tema “Aperfeiçoamento de Legislação sobre Pulverização Aérea”, a fim de refletir sobre a legislação de uso de agrotóxicos do estado e seus impactos sobre a agricultura familiar, sobre a saúde e o meio ambiente. Essa audiência foi construída em parceria com o Ministério Público Federal e Estadual, o Ministério Público do Trabalho e a Comissão de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos do MS. Nessa audiência foi levantada a necessidade de leis mais restritivas para pulverização aérea, incluindo aumentar a distância mínima em relação a comunidades, moradias, nascentes etc., e também a necessidade de melhorar o processo de fiscalização.
Apesar da importância desse momento, e da mobilização que foi construída, o estado não avançou no processo de alteração da legislação já existente por uma mais restritiva, por causa da força política do setor ruralista. Mas, a partir dessa segunda audiência, a prefeitura de Glória de Dourados iniciou o diálogo com as organizações do município, principalmente via APOMS, sobre quais as ações possíveis para resolução do problema, e a partir daí veio a construção de um projeto de lei para proibir a pulverização aérea de agrotóxicos no município, que foi sancionada no dia 23 de novembro de 2016.
Em paralelo à criação da lei (mesmo com a criação da lei, os prejuízos causados pela deriva continuaram, com a pulverização ainda acontecendo no município vizinho), o prejuízo dos agricultores seguiam acontecendo e eles seguiam em busca dos seus direitos junto ao MPE e ao MPF, que intermediaram um acordo com a usina incluindo a criação de uma comissão para acompanhar os casos futuros, a doação dos 75% dos prejuízos mensurados para investir no laboratório da Embrapa e criar um sistema de monitoramento em tempo real das aeronaves. A formação dessa comissão foi uma conquista da articulação dos agricultores. Vale ressaltar a importância da experiência de construção dessa lei para o estado do MS, mas também para a região Centro-Oeste. Considerando a força do protagonismo político do agronegócio na região e também que esta é a única lei restritiva a essa técnica nos três estados que compõem a região, o processo de mobilização e as estratégias de articulação, ampliando o diálogo para outros setores e relacionando impactos diretos e indiretos, desenha um caminho possível no enfrentamento ao uso de agrotóxicos. Desta forma, é reconhecida a necessidade de divulgar os êxitos do processo e fortalecer a resistência no município, defendendo a permanência da lei.