Banco de Sementes e as articulações em defesa das sementes da paixão

No semiárido, a agricultura familiar reconstitui seus estoques de sementes a partir da produção própria de variedades locais, conhecidas como sementes da paixão. Embora as estratégias tradicionais de conservação desses estoques tenham sido responsáveis pelo desenvolvimento da rica agrobiodiversidade na região, elas vêm se mostrando insuficientes frente aos atuais processos de erosão da diversidade genética na agricultura. O tamanho cada vez mais reduzido das propriedades familiares, associado à irregularidade climática, vem levando à perda das sementes. Diante desse contexto, os roçados, cada vez menores, dificilmente produzem o suficiente para atender às necessidades alimentares das famílias e recompor suas reservas de sementes para a safra seguinte. Outro fator que exerce grande pressão sobre os recursos da agrobiodiversidade é a substituição das sementes da paixão por sementes certificadas produzidas em outras regiões e pouco adaptadas ao semiárido e aos sistemas de cultivo nos roçados diversificados dos agricultores. Essas sementes são disponibilizadas por programas públicos que vêm historicamente reforçando os meios clientelistas de manutenção do poder adotados pelas oligarquias rurais da região. Os bancos de sementes comunitários surgiram como forma de enfrentar esses problemas, ao criarem estoques suplementares às reservas familiares. Trata-se de um mecanismo por meio do qual a família toma emprestada uma quantidade de sementes e se compromete, segundo regras definidas na própria comunidade, a devolver a mesma quantidade acrescida de uma percentagem no momento da colheita. A estocagem, a entrega e a devolução das sementes são realizadas na própria comunidade, sob a gestão de uma associação ou um grupo informal. Os bancos de sementes comunitários são as unidades básicas de referência da Rede Sementes da Paraíba. Eles funcionam como núcleos polarizadores das famílias a eles associadas que, por sua vez, possuem seus próprios estoques de sementes. Os bancos funcionam não só como estruturas físicas para o armazenamento seguro das sementes, mas também como espaços de articulação das famílias para a realização de processos de inovação agroecológica e de trocas de conhecimentos e sementes da paixão. Em muitos municípios foram constituídas comissões de agricultores e agricultoras responsáveis por articular os bancos e administrar o complexo sistema de intercâmbios de conhecimentos e sementes. Em cada uma das regiões do estado existem articulações dos grupos gestores dos bancos de sementes. Há, por exemplo, a Rede Sementes do Alto Sertão, que reúne 90 bancos de sementes. Na região da Borborema, o Pólo Sindical formou uma comissão de agricultores e agricultoras que gerencia uma rede de 80 bancos comunitários. No Cariri e no Seridó, o Coletivo Regional organiza a rede, articulando aproximadamente 200 agricultoras e agricultores inovadores. O mesmo ocorre no sertão, no Curimataú, no Coletivo ASA Cariri Ocidental (Casaco), no Fórum de Lideranças do Agreste (Folia), no brejo e no litoral. A Rede Sementes da Paraíba realiza suas avaliações e planejamentos por meio de uma comissão estadual composta por representações dessas diferentes redes microrregionais. Trata-se, portanto, de uma rede de redes. Embora os bancos de sementes comunitários sempre tenham sido estratégicos para as milhares de famílias do estado a eles associadas, foi somente após a construção de uma identidade coletiva, que abarcava todas as iniciativas, que se consolidou o sentido de pertencimento a uma rede de abrangência estadual. Essa foi uma condição para que a Articulação do Semiárido Paraibano (ASA-PB) pudesse se constituir, ao vincular os processos de base e lideranças locais presentes nos municípios e comunidades do estado às lutas mais amplas em defesa da agrobiodiversidade e de um modelo de desenvolvimento rural sustentado fundamentado na agricultura familiar. A coesão construída entre os grupos comunitários e articulações microrregionais ao longo dos últimos anos tem sido condição fundamental para que a Rede Sementes da Paraíba, articulada pela ASA-PB, se afirme como ator político importante na negociação de políticas públicas junto a diferentes instâncias do estado. Uma evidência disso foi a aprovação da Lei nº 7.298, de dezembro de 2002, que criou o Programa Estadual de Bancos de Sementes Comunitários, autorizando o governo da Paraíba a adquirir sementes de variedades locais para o fortalecimento e ampliação dos bancos em todo o estado. Nesse mesmo sentido, os convênios posteriormente celebrados entre a ASA-PB e a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) foram outra importante conquista desse processo construído de baixo para cima, com a mobilização ativa dos grupos comunitários. A ASA-PB já conta com uma rede estadual composta por 228 bancos de sementes comunitários, que envolvem 6.561 famílias residentes em 63 municípios e que conservam mais de 300 variedades de milho, feijão, fava, mandioca, girassol, amendoim e espécies forrageiras e frutíferas resgatadas nas próprias comunidades. Em parceria com organizações da Via Campesina, a ASA-PB vem organizando, desde 2007, a Festa da Semente da Paixão. Ao visitar a Festa da Paixão, é possível entender que, para as agricultoras e agricultores da Paraíba, a semente da paixão significa muito mais do que a semente colocada na terra para germinar. Representa o conjunto da agrobiodiversidade do semiárido, base para os roçados de policultivos, tão importantes para a convivência com o semiárido e para a garantia da segurança alimentar das famílias.