A Vida de Vanda

Há muitos anos assume-se que a abordagem metodológica de caráter participativo e o enfoque agroecológico de gestão de recursos produtivos se conjugam positivamente, de forma a favorecer a emergência de processos de transformação e emancipação das mulheres, seja no âmbito dos núcleos familiares ou nos espaços de participação comunitária. E, de fato, ao analisar a trajetória do Programa de Formação em Agroecologia do Pólo da Borborema, é possível verificar um crescente avanço no envolvimento e na participação das mulheres. Elas se destacam como agentes protagonistas na condução de experiências técnicas inovadoras, na construção e disseminação de novos conhecimentos, na gestão econômica de suas propriedades e na atuação política, contribuindo para a afirmação da identidade de agricultora-experimentadora. À partir de 2007, o Pólo da Borborema passou a olhar para o tema do protagonismo das mulheres e das relações sociais de gênero na agricultura familiar de forma mais sistemática, com a hipótese de que existe uma correlação positiva entre as dinâmicas de inovação agroecológica – fundamentalmente vinculadas a processos de aquisição, experimentação e transmissão de conhecimentos – e a trajetória de empoderamento das mulheres. Exemplo desse protagonismo é a história de Vanderli Florentino da Cruz, ou simplesmente Vanda, como é mais conhecida. Nascida em 1973, em Serra Branca, no Cariri paraibano, sua vida é marcada por grandes dificuldades, mas também por muitas, muitas superações. Sua trajetória e o despontar como liderança no município de Remígio, na Paraíba, fizeram com que fosse lembrada pela Comissão de Saúde e Alimentação do Pólo Sindical e das Organizações da Agricultura Familiar da Borborema como uma mulher cuja vida deve ser observada e contada. Vanda ensina que, além das dificuldades, a vida nos oferece portas que se abrem e revelam as oportunidades para uma vida nova, um mundo novo. Vanda viveu com seus pais e seus cinco irmãos nas terras de um fazendeiro, no sítio Serrotão, até Vanda completar sete anos de idade. Depois a família mudou-se para uma casa com um pequeno roçado, no sítio Pau Ferro, também em Serra Branca, onde sua mãe vive até os dias de hoje. Porém, as terras novas ainda eram insuficientes para garantir o sustento da família. Casou-se nova, os 14 anos, e mudou-se do Cariri para o Brejo. De lá, através do contato com um primo, resolveu mudar para Remígio, mas somente em 2001 surgiu a oportunidade do assentamento na vida do casal. O antigo proprietário da fazenda queria vender suas terras. Quando soube, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Remígio indicou sua desapropriação ao Incra. Essa era uma área de Afonso Macedo, que foi bem fácil desapropriar porque tinha mão-de-obra escrava e exploração do trabalho infantil, conta Vanda. Ednaldo, marido de Vanda, ficou sabendo da desapropriação no sindicato do município, participou de uma reunião no assentamento e depois levou uma cópia de todos os documentos para a inscrição no Incra. Ali não teve ocupação, foi preciso apenas inscrever as famílias e logo saíram os lotes. Mesmo com a nova terra continuaram trabalhando na terra do patrão, o que lhes dava segurança e uma renda garantida. Mas, aos poucos, com o aumento da confiança, o sonho de cuidar da própria terra foi aumentando até que, em 2002, saiu o crédito fomento e, em 2003, o de moradia. Só em 2004 é que se mudaram definitivamente para as novas terras. Ednaldo conta que, nelas, a vida mudou completamente. Outra novidade foi a vivência coletiva. No assentamento, fundaram uma Associação e logo Vanda foi chamada para participar como tesoureira. Lá, aprendeu muito. Um dos problemas enfrentados após a mudança para o assentamento foi o lixão vizinho, onde a prefeitura, para diminuir o volume, colocava fogo 24 horas por dia. A situação estava tão grave que Vanda foi ao prefeito, acionou a promotoria e articulou diversas instituições -- Incra, Prefeitura, STR, AS-PTA, Embrapa e MST. Por fim, o Incra decretou que a prefeitura deveria retirar o lixão. Foi uma grande conquista que rendeu seu reconhecimento como liderança: em 2005 foi eleita presidente da Associação e passou a participar do Conselho de Desenvolvimento Rural de Remígio. A Agroecologia também foi uma grande porta para ela, sendo o espaço onde teve a oportunidade de acessar, construir e compartilhar conhecimentos. Em 2004, quando começaram a luta com a questão do lixo junto ao sindicato, logo surgiram várias discussões novas sobre agricultura para o assentamento. A primeira delas foi sobre silagem. Vanda foi ver como se fazia um silo na comunidade de Gruta Funda, em Remígio. Foi a primeira visita de intercâmbio de que participou, e depois não parou mais. O silo, por exemplo, viabilizou que toda o alimento do gado fosse produzido na sua propriedade. Depois começaram a desenvolver a experiência dos Fundos Rotativos Solidários, junto ao Pólo da Borborema. No início, ninguém no assentamento tinha, conhecia e nem queria cisternas, porque não queriam ficar devendo, mas essa realidade foi mudando. No quintal, a família de Vanda cultiva inúmeras plantas que são utilizadas como remédio (malva-rosa, acôndido, cana-do-brejo, sabugueira, alecrim, manjericão, arruda, hortelã-gordo, erva-cidreira, rosedá, penicilina, hortelã-amargoso, rosa branca, mamão, laranja, romã, acerola, limoeiro, azeitona e nim). Vanda conta que sempre se interessou em conhecer as plantas medicinais, desde quando ainda morava no Brejo. Com esse “arredor de casa”, diminui muito o gasto de dinheiro com remédio para gripe, para dor. Vanda é ainda a pessoa da família que participa da feira agroecológica do município de Remígio. Ela avalia que a feira é uma experiência importante para a família, porque podem vender os produtos agroecológicos diretamente para os consumidores, livrando-se assim dos atravessadores, que pouco se importam se o produto é ecológico ou não. O valor conseguido por produto é muito melhor e sempre tem uma freguesia certa. Na feira, vendem o doce de mamão feito semanalmente por ela e sua vizinha, galinhas vivas, ovos e, na época de milho verde, pamonha, além de maxixe, quiabo, feijão verde e mudas de plantas que fazem sob encomenda. Ednaldo é o responsável pelo plantio e pelo cuidado das mudas. Eles se divertem ao pensar que, em pleno Curimataú, uma região muito seca do município, conseguem produzir e vender na feira mudas de plantas medicinais, ornamentais e frutíferas. Vanda lembra que no Brejo havia mais água, mas não tinham o conhecimento de hoje e, por isso, não produziam nem vendiam. E para o futuro? Vanda sonha em voltar a estudar, para continuar aprendendo mais. A família também está se organizando para que os filhos frequentem a universidade. Ao observar sobre a trajetória da vida de Vanda, podemos perceber algumas transformações no interior de sua família motivadas por processos que colocam em permanente tensão os mecanismos sociais de dominação e emancipação. Contudo, são várias as “portas” que podem ser abertas pela Agroecologia, de modo a alterar positivamente as relações sociais, potencializando as capacidades individuais de mulheres e homens.