Acesso dos povos indígenas a mercados institucionais
A Comissão de Alimentos Tradicionais dos Povos no Amazonas- Catrapoa iniciou seus trabalhos no final do ano de 2016 coordenada pelo 5º Ofício do Ministério Público Federal no Amazonas, que atua com povos indígenas e comunidades tradicionais. A Comissão conta com a participação de órgãos públicos federais, estaduais e municipais, bem como de entidades da sociedade civil e movimentos indígenas/sociais, no intuito inicial de viabilizar o acesso à venda da produção tradicional de povos indígenas e comunidades tradicionais por meio dos programas de compras públicas (Programa Nacional de Alimentação Escolar– PNAE, Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, Programa de Regionalização da Merenda Escolar – Preme).
Após diversas reuniões nos anos de 2016 e 2017 da Catrapoa, verificou-se a existência de várias dificuldades para a compra direta de produtos alimentícios indígenas para as suas aldeias. Dentre eles, podemos citar:
1. Legislação nacional que regula os aspectos sanitários não compreende, geralmente, as formas tradicionais de produção e consumo;
2. A dificuldade de emissão da declaração de aptidão ao Pronaf (DAP), cartão do produtor rural (programa do Amazonas que isenta a cobrança de ICMS na emissão de notas fiscais de venda de produtos e traz outros benefícios) para povos indígenas e tradicionais;
3. O desconhecimento e, por vezes, a omissão dos gestores públicos sobre o cumprimento da obrigatoriedade de aquisição de no mínimo 30% de produtos da agricultura familiar e;
4. A falta de conhecimento e necessidade de formação de agricultores indígenas e outros povos tradicionais sobre as políticas de compras públicas, os requisitos para acessá-las e a possibilidade de reivindicação do cumprimento da legislação.
O Ministério Público Federal – MPF no Amazonas instaurou um procedimento administrativo em 2017 para acompanhar este tema, foco das reuniões da Catrapoa. Em 2017, no âmbito da Catrapoa, foi expedida a Nota Técnica nº 01/2017/ADAF/SFA- AM/MPF-AM (http://www.mpf.mp.br/am/alimentacao-tradicional/a- catrapoa/documentos/nota-tecnica-no-1-2017), assinada pela Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do Estado do Amazonas – Adaf, Superintendência Federal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Amazonas − SFA/Mapa/AM e MPF/AM, que permite a compra institucional de povos indígenas de produtos de origem animal (peixe e frango) e processados vegetais (farinha de mandioca, tapioca, etc e polpas de frutas) produzidos na própria comunidade/aldeia, ou no entorno próximo, sem a exigência dos registros sanitários. A Nota considera a existência de autoconsumo, em que desde a produção até o consumo final nas aldeias trata-se de um contexto familiar, e de mecanismos tradicionais de controle alimentar na cultura dos povos indígenas.
Entre 2018 e 2019, foram realizadas oficinas de formação que envolveram diferentes atores envolvidos na alimentação escolar indígena, nos municípios de Canutama, Eirunepé, Lábrea, Pauini, São Gabriel da Cachoeira e Tapauá. Estas ações contaram com a participação de organizações governamentais das esferas federal, estadual e municipal (FEI, FNDE, Funai, Idam, Mapa, Seduc, prefeituras), organizações da sociedade civil, povos indígenas e tradicionais destas regiões. Um dos resultados destas capacitações foi a elaboração de termos de compromisso visando fomentar a implementação de projetos pilotos com chamadas públicas diferenciadas nestes municípios, além do comprometimento com outros pontos em relação à educação e à alimentação escolar indígena e de comunidades tradicionais.
Foi realizada intensa articulação junto aos órgãos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) locais, em especial Idam, sociedade civil, FEI/AM e Funai, de modo a possibilitar a expedição de documentações aos indígenas que dessem acesso às compras públicas no âmbito da agricultura familiar (em especial a DAP – Declaração de Aptidão ao Pronaf).
No início de 2019, o MPF/AM enviou a Recomendação Nº 01/2019 5º OFÍCIO/PR/AM FORÇA TAREFA AMAZÔNIA, que trata sobre o cumprimento da obrigação legal da contratação mínima de 30% de produtos da agricultura familiar (Lei nº 11.947/2009), com prioridade aos povos indígenas, quilombolas e assentados da reforma agrária, considerando a Nota Técnica nº 01/2017/Adaf/SFA-AM/MPF-AM. O documento destaca que o descumprimento desta determinação legal pode acarretar responsabilização ao gestor executivo do município ou estado, inclusive por improbidade administrativa. A partir de então, houve um processo inédito de lançamento de chamadas públicas para aquisição de produtos da agricultura familiar, sendo parte específica para povos indígenas, com base na NT.
Resultados
· Articulação e integração interinstitucional entre organizações públicas de atuação federal, estadual e municipal, da sociedade civil, lideranças indígenas e tradicionais na formulação, divulgação e implementação de políticas públicas de comercialização voltadas à agricultura familiar, com foco no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para as populações citadas, mas também com atuação em outros programas de compras públicas (PAA, PREME);
· Expedição da Nota Técnica nº 01/2017 pelo MPF e instituições responsáveis pela fiscalização sanitária no Amazonas (Superintendência Federal de Agricultura e Agência de Defesa Agropecuária no Amazonas), relativa ao autoconsumo/consumo familiar no contexto dos povos indígenas, que permite a aquisição pelas escolas indígenas de proteína (peixe, frango etc.) e de produtos vegetais processados (farinha, polpas, geleias etc.) provenientes das próprias comunidades ou aldeias, no âmbito do PNAE, adequando entraves burocráticos desconectados das tradições alimentares quanto aos padrões de vigilância sanitária, considerando a existência de mecanismos tradicionais de controle alimentar dentro da cultura destes povos;
· Expedição da Nota Técnica nº 03/2020/6ªCCR/MPF que amplia o entendimento da Nota Técnica 01/2017 para todo o Brasil, bem como para todos os povos tradicionais, quilombolas e indígenas do país, que passam a poder vender sua produção de proteínas e processados aos programas de compras públicas sem as inadequações dos registros sanitários padrões, com respeito à cultura e tradições destes povos, quando o alimento for destinado ao consumo destas mesmas populações;
· Formação e divulgação sobre o PNAE e outros programas de comercialização da agricultura familiar para os povos indígenas, populações tradicionais e gestores públicos;
· Elaboração de cartilha e modelos de chamadas públicas para agricultura familiar e específica para povos indígenas, com base na Nota Técnica nº 01/2017/ADAF/SFA- AM/MPF-AM, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE);
· Recomendação sobre o cumprimento da obrigação legal da contratação mínima dos 30% de produtos da agricultura familiar (Lei n. 11.947/09) para todos as prefeituras do Amazonas, o que desencadeou um processo inédito de lançamento de chamadas públicas, beneficiando agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais;
· Lançamento de chamada pública específica para povos indígenas, com base na Nota Técnica nº 01/2017 pela Secretaria de Estado de Educação e Qualidade de Ensino (Seduc), como resultado das articulações promovidas pela comissão e da recomendação expedida pelo MPF, que contemplou 16 municípios no valor total de 700 mil reais;
· Chamadas públicas específicas para povos indígenas em andamento em 15 municípios (25% do total) do Amazonas, com valor de mais de 3 milhões e diversidade de 57 produtos. Em São Gabriel da Cachoeira as propostas de venda atingiram 100% do valor repassado pelo FNDE para alimentação escolar.
· 50 dos 62 municípios amazonenses lançaram chamadas públicas para aquisição de produtos da agricultura familiar, sendo pelo menos seis, com base na Nota Técnica nº 01/2017, específicas para povos indígenas, envolvendo em torno de 100 produtores indígenas. Lançaram chamadas públicas atendendo à recomendação do MPF;
· A compra direta de alimentos em comunidades e aldeias, com produção e entrega no mesmo local ou em locais próximos, resulta também na redução de custos logísticos para o poder público, conforme é possível verificar em exemplo apresentado pela Secretaria de Educação do Estado do Amazonas (Seduc), que afirmou em 2017 que em alguns locais do Amazonas há um gasto estimado cinco vezes maior com a logística, do que o próprio valor da alimentação escolar em si;
· Participação ativa de organizações dos povos indígenas e, mais recentemente, das populações tradicionais e agricultores familiares orgânicos, que têm desempenhado papel importante na articulação, disseminação e implementação das políticas públicas de comercialização para a agricultura familiar, o que contribui, ainda, com o empoderamento e autonomia destes povos e comunidades;
· Recomendação MPF nº 01/2018/GT Agroecologia, que trata do pedido de revogação da Portaria da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário (Sead) n. 523, que alterou o prazo de validade da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), documento exigido para o acesso às políticas públicas de comercialização voltadas aos agricultores familiares, restringindo de dois para um ano. Articulada pelo 5º Ofício do MPF no Amazonas em conjunto com integrantes da Catrapoa, a recomendação foi enviada via ofício à Sead, atualmente Secretaria de Agricultura Familiar (SAF) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e respondida no início de 2019, com o acatamento das medidas recomendadas;
· Lançamento do “Guia prático: Alimentação escolar indígena e de comunidades tradicionais. Caso: PNAE Indígena no Amazonas” em julho de 2020, em parceria entre Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e Cooperação Alemã GIZ, e em coautoria com membros da Catrapoa, de modo a replicar a prática em todo o Brasil.