Medicina popular e biodiversidade no Cerrado

Cerrado é um bioma que ocupa 25% do território brasileiro e apresenta cerca de 6.429 espécies de plantas catalogadas e uma profusão de raízes, cascas, flores, resinas, óleos e folhas. Esses recursos naturais do Cerrado, principalmente as plantas medicinais, são primorosamente manejados por seus povos para os cuidados da saúde familiar e nos atendimentos de saúde. Eles assim preservam um inestimável patrimônio cultural, expresso no uso de seus recursos naturais por conhecedores tradicionais e grupos organizados nas comunidades. Os conhecedores tradicionais são reconhecidos como raizeiros/as, benzedores/as, parteiras/os, entre outras denominações. São especialistas em caracterizar os ambientes do Cerrado, identificar plantas medicinais, coletar partes medicinais de uma planta, diagnosticar doenças, preparar e indicar remédios. No entanto, o bioma do Cerrado e sua população estão ameaçados pelo avanço do agronegócio, que tem se intensificado com o plantio da cana-de-açúcar para a produção de etanol. O Cerrado já é pensado como uma grande monocultura, e as consequências são diversas, como a perda da biodiversidade, das águas, das culturas, da soberania alimentar e da medicina popular. Os povos do Cerrado estão, cada vez mais, empobrecidos, sem oportunidades e principalmente sem as suas raízes culturais. Nesse contexto, a principal estratégia adotada pelos grupos comunitários que praticam a medicina popular é a sua participação em movimentos e rede socioambientais. Buscam, portanto, se organizar e articular na perspectiva de proteger e dar continuidade à transmissão de seus conhecimentos tradicionais, de promover as boas práticas de uso e manejo de plantas medicinais e de influenciar políticas públicas para o reconhecimento social da medicina popular e o uso sustentável do Cerrado. Os grupos comunitários, urbanos ou rurais, são compostos principalmente por pessoas ligadas a organizações sociais, como pastorais da saúde e da criança, associações, grupo de mulheres e sindicatos de trabalhadores rurais. Eles se tornam referência nas comunidades em que são formados, sendo conhecidos pela confiança e eficácia de seus tratamentos de saúde, assim como por propiciar o acesso das pessoas aos remédios de plantas medicinais, que são vendidos a baixo custo ou doados a quem não pode pagar. Em um levantamento realizado nas regiões do vale do Rio Vermelho (GO), do norte de Minas Gerais e do alto Jequitinhonha (MG), verificou-se que, aproximadamente, 7.300 pessoas recebem atendimento de saúde todos os meses por meio do trabalho de 31 grupos comunitários. A Pacari é uma articulação que reúne pessoas, grupos comunitários e associações que trabalham com plantas medicinais e estão espalhadas pelo bioma Cerrado. Tem sua origem na Rede Cerrado e na Rede de Plantas Medicinais da América do Sul, e sua articulação inicial se deu em 1999, na Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (Rede) e, posteriormente, em 2000, por meio do projeto Intercâmbio e Articulação de Experiências de Plantas Medicinais do Cerrado, apoiado pelo Programa de Pequenos Projetos do Fundo Mundial para o Meio Ambiente/Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PPP/GEF/Pnud). Em 2002, a Articulação foi fortalecida pelo projeto Rede de Plantas Medicinais do Cone Sul, apoiado pelo Centro Internacional de Investigação para o Desenvolvimento (IDRC). Hoje, a rede articula 80 organizações de dez regiões dos estados de Minas Gerais, Goiás, Tocantins e Maranhão. Uma das ações da Articulação Pacari foi a construção da Farmacopeia Popular do Cerrado, com o objetivo de alcançar o reconhecimento social da prática popular do uso de plantas medicinais e contribuir para o uso sustentável do Cerrado. As farmacinhas, locais utilizados pelos grupos para a preparação dos remédios à base de plantas medicinais, por exemplo, se caracterizam por produzir em média 14 formas de remédios: garrafada; tintura; xarope; vinagre medicinal; pomada; creme; sabonete; pílula; bala medicinal ou pastilha; doce ou geléia medicinal; óleo medicado; pó; chá (planta seca); e multimistura. Dessas 14 formas, são produzidos em média 40 tipos diferentes de remédios com o uso de, aproximadamente, 70 espécies de plantas medicinais, sendo cerca de 40% nativas do Cerrado. Consiste em um espaço de uma cozinha doméstica adaptado para preparar remédios com plantas medicinais e tem praticamente as mesmas características da farmácia caseira, mas se diferencia por ter espaço próprio, em local específico na comunidade e estar aberta ao público em geral. Os grupos comunitários expressam muita preocupação por prestar um serviço informal de saúde à comunidade sem o seu reconhecimento por políticas públicas. O principal receio é o de que a vigilância sanitária feche a farmacinha, aplique multas ou mesmo mova um processo judicial contra as pessoas responsáveis pelo trabalho. A estratégia identificada pela Pacari para começar a superar essa insegurança foi a de influenciar a formulação de políticas públicas e fortalecer a ação dos grupos comunitários por meio de capacitações. Essa demanda resultou na realização de cursos denominados Boas Práticas Populares de Uso e Manejo de Plantas Medicinais do Cerrado, com a duração média de 200 horas de aula. Um dos principais resultados dos cursos foi o início da elaboração coletiva de técnicas de controle de qualidade para a preparação de remédios nas farmácias comunitárias. Essa iniciativa contribuiu para elevar o sentimento de segurança dos grupos e fazê-los despertar para a necessidade da construção, por parte da sociedade civil, de uma proposta técnica ampla e politicamente articulada para a prática da medicina popular. Essa proposta política foi denominada autorregulação da medicina popular, que se baseia no princípio da segurança do que é produzido em uma farmácia comunitária. Esse princípio está sendo construído através de três critérios básicos: a) a indicação do uso de uma planta determinada pelo conhecimento tradicional; b) a qualidade da planta utilizada para se fazer um remédio; c) boas práticas utilizadas na preparação do remédio. A experiência sobre o uso tradicional das plantas medicinais para determinados sintomas e doenças está sendo registrada na Farmacopeia Popular do Cerrado, livro de linguagem fácil que descreve a ecologia, o manejo e o uso das plantas medicinais do Cerrado. O principal objetivo da Farmacopeia é disponibilizar para os grupos comunitários uma referência teórica sobre as plantas medicinais usadas nas preparações de remédios, contribuindo dessa forma para gerar segurança acerca do que é produzido nas farmácias comunitárias. Entre outros objetivos da Farmacopeia estão a valorização, a continuidade da transmissão e a proteção dos conhecimentos tradicionais. A Farmacopéia foi elaborada por Comissões Regionais formadas por raizeiros, representantes das farmacinhas e técnicos. A metodologia utilizada foi o diálogo de saberes, que coloca o conhecimento tradicional como a base da pesquisa e proporciona a sua complementação com informações técnicas. Os raizeiros e representantes dos grupos comunitários se tornaram pesquisadores populares, estudando as plantas em campo e fazendo o registro participativo dos conhecimentos levantados. Como resultado, “o grupo entendeu mais sobre as plantas, ficou mais confiante e até o amor pelas plantas cresceu”, afirmou um dos participantes. Outra estratégia para a proteção dos conhecimentos tradicionais contidos na Farmacopeia foi a solicitação de seu registro como Bem Cultural de Natureza Imaterial junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do Ministério da Cultura. As farmácias comunitárias são verdadeiros laboratórios culturais, onde cotidianamente são experimentados, preservados e/ou transformados os conhecimentos tradicionais sobre temas como o uso e manejo das plantas, as receitas de remédios (formulários), o diagnóstico popular de doenças, os processos de cura, entre outros. Entretanto, o registro das informações e conhecimentos gerados em uma farmácia comunitária também é um grande desafio para a autorregulação da medicina popular. Entre essas informações destacam-se o número de pessoas atendidas por mês, as principais doenças tratadas, o volume de remédios utilizados, o custo médio por pessoa atendida, a quantidade de plantas utilizadas e a eficácia dos tratamentos. A medicina popular tem raízes numa realidade social de pobreza e se destaca pela prestação de serviços básicos de saúde. As pessoas envolvidas nesse trabalho geralmente têm muita fé e guardam e transmitem sua cultura por meio do uso sustentável dos recursos naturais. Diante dessa realidade, cabe perguntar a real dimensão e importância social dessas práticas culturais. Quantas farmácias comunitárias existirão nos cerrados com seus dois milhões de km? Por que o trabalho desses grupos permanece invisível? A Articulação Pacari vem tecendo uma rede de informações junto às comunidades para trazer à luz o significado desse trabalho e, com seu reconhecimento social, contribuir para a construção de uma política nacional de saúde que integre diretrizes ambientais e culturais.

Anexos

Anexo 1

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Anexo 2

Anexo 2

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